DOIS ESTUDOS ANTROPOGEOGRÁFICOS

Baga Defente
5 min readFeb 12, 2014

I
Cartografia do Teu Sabor
(lembranças para possível videodança)

é quase meia noite no relógio do laptop dela, se eu sair imediatamente e correr, talvez ainda pegue o último trem, mas existe certa tensão boa no ar, foda-se o relógio, o metrô e o resto do universo fora deste apartamento. corpos em P&B, frio: camadas de peles, aquela luz azulada da tevê sei lá porque constantemente ligada e quase sem som, jornais, filmes & entrevistas meio sem por quê? luz azulada que não s’encontra com a luz amarelada da cozinha — meio bagunçadinha, né? (quase) tive vontade de arrumá-la, não estava frio como hoje, a noite mais fria do ano, mas a (quase) vontade passou. é diferente, nem as palavras apareceram ainda, talvez precisem de menos espaço & mais tempo. mesmo assim atrito esquenta, é bom no frio, deixa ofegante, afaga a alma, eu me sentia numa dança, sabia? sério, uma coisa bem minimalista & sutil, tipo feldenkrais, lento e sem esforço, saca? três câmeras: geral aberto, três quartos em médio e uma solta para detalhes, camada por camada, pele por pele, deliciosamente slow, penumbra sensual.

(estas palavras ficaram péssimas, desculpe(m), tentarei novamente, tá?)

II
Da testa, do nariz às pernas, da primeira vez que te vi, tua topografia me interessou

um mapeamento dos desejos, das emoções sensoriais relacionadas ao momento das suas realizações, seus antes seus depois. um conjunto de intrincadas representações sentimentais, a complexidade de suas sintaxes incompletas & reflexivas. conversa composta de pequenos silêncios invisíveis, subtexto dúbio, depoimentos difusos na penumbra, os pseudo-halos dos postes de rua e dos prédios pela janela pela sacada por todo o ar da tua sala, aquele tom azulado da tevê constantemente ligada na cultura, filme jornal seilá, microruídos, murmúrios da mídia medieval enquanto o vinho alterava minha percepção da luz que transmutava teu lindo rosto em tantos outros, todos belos e não mais que de repente você voltava a alguns assuntos do universo afetivo-relacional humano, experiências & constatações que me levavam a pensar que você também estava afim, mas talvez fosse só impressão minha, nunca tenho certeza de (quase) nada nessas horas —a gente nunca tem realmente certeza de nada, né? o tempo ia passando, o vinho esboçava um sono fugidio o ar se tornava mais denso a fina película elétrica presente no espaço começava a se intensificar tornando o ar ao nosso redor mais rarefeito a cada instante palavra ou olhar e nós ali, assistindo uma incrível videodança que depois descobri ser uma animação do mclaren, cada vez mais próximos eu em pé você sentada lado a lado olhando a tela e de tão tangível o ar entre nós era quase como se nossas peles já estivessem se tocando e os minutos voavam enquanto em silêncio eu inutilmente esboçava para dizer algo até que perguntei o que você achava de nós dois, a princípio você riu, s’esquivou e eu fiquei ainda mais confuso, então perguntei alguma coisa que agora não me lembro e você respondeu algo que eu, não sem certa dúvida, interpretei como um índice de interesse, mas aí eu já estava massageando suas escápulas, iniciando o estudo topográfico sensorial do teu corpo carregados de casacos.

provavelmente foi o contexto todo, não só da noite como da motivação dos nossos personagens e seus momentos pessoais, “não existe relação sexual” comenta você citando lacan. tal aforismo me despertou reflexões posteriores, talvez vocês estejam certos e não exista mesmo, ao menos não enquanto relação, apenas como encontro — não há fusão, mas sim troca, mas quando eu toquei seu corpo, até mesmo instantes antes da pele dos meus dedos tocarem sua pele sem o filtro dos tecidos, eu me senti dançando de olhos abertos ou fechados eu estava dançando sentindo a rigidez macia dos teus braços lisos eu conhecia compreendia novos pequenos pedaços da tua alma, ínfima parte do teu infinito todo. difícil descrever em palavras as sensações sentidas naquelas poucas centenas de segundos quando meu corpo parecia saber instintivamente como se mover deslizando em conjuntura com o teu e tinhas tuas mãos que vez guiava vezoutra censurava eu sentia teu riso e por dentro eu também ria e ronronava mordia lambia & explorava cada um dos poucos centímetros acessíveis do teu mapa carnal naquela gelada noite de julho. você também disse algo sobre homens mimados e nosso erro em considerar o sexo somente uma coisa quando na verdade ele é todas — gata, eu concordo, pode ser um & ser tudo, mas na hora não dei muita bola e continuei a tentar mapear teus traços perdidos entre tantas camadas de tecido enquanto meu corpo insistia em dançar com o teu fora do meu controle, metade da mente sentindo metade visualizando aquilo tudo de fora, em closes & planos fechados, talvez P&B gravado em fundo preto (sim, ando meio clichê), algumas macros & uns slows — presenciei isso rapidamente com olhos holísticos enquanto meu corpo se movia por puro feeling como se conduzido pela sinfonia silenciosamente ofegante da tua respiração e tem aquela coisa de que acariciar uma nuca feminina é como acariciar um felino e essas duas coisas — mulheres & felinos — são coisas que gosto muito, tanto quanto tapiocas com guacamole & deusas gregas.

capa do livreto ilustrado “Bíblia Decente”, que contém este conto.

O texto acima é integrante do livreto ilustrado “Bíblia Decente (Memórias p/ estudo cartográfico do corpo teu)”, criado por mim em junho de 2013.

A obra é composta por desenhos, colagens e frases aleatórias registradas ao longo de quase uma semana sobre um velho manual do cliente de seguro automotivo.

Minha idéia é viabilizar a impressão de uma pequena tiragem da obra este ano. Patrocinadores e parceiros são sempre bem vindos!

Você pode saber um pouco mais sobre e visualizar o livro em formato digital neste link: www.nada.art.br/books/biblia-decente

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