Escond&scondE

As criancas & o vento, brincando.

Baga Defente
6 min readSep 5, 2018

Este texto foi originalmente escrito em 2010. De lá pra cá muita coisa mudou, mas ainda assim busquei alterá-lo o mínimo possível, respeitando as reflexões feitas no momento da sua escrita. É válido ter isso em mente para melhor compreensão de algumas reflexões apresentadas.

Preâmbulo

Sábado, 24 de julho de 2010, fim de tarde.
Interior de SP, 235 km da capital, Botucatu, Bairro Demétria, Sítio Bahia.

Naquele final de semana, with a little help from my friends, rompemos a bolha cinza que circunda a Desvairada para desfrutar um pouco de ar puro interiorano.

O que motivou esta curta viagem foi a oportunidade de conhecer a Demétria, bairro rural localizado no município de Botucatu, surgido em torno do primeiro projeto de agricultura biodinâmica no país, a Estância Demétria.

Pela hora do almoço, após indicação dada na Bioloja — lojinha do bairro, na qual pode-se encontrar pães, bolos, frutas, verduras e afins biodinâmicos —, encontramos uma agradável pousada em frente à entrada do bairro, no outro lado da rodovia, capitaneada por uma simpática senhora que aparentava usar peruca.

Pernoite acertado, deixamos nossas coisas e partimos atrás de comida.
Andamos um pouco por estradas de terra envoltas em uma curiosa vegetação que mescla características de mata nativa e cerrado.

Seguimos algumas placas com setas que indicavam um lugar chamado é ali até o texto delas mudar para é aqui. E lá (ali? aqui..?), por entre galos, galinhas & pintinhos, encontramos uma deliciosa feijoada vegetariana com limonada & salada orgânica

Saciados, tiramos o time e fomos explorar o mato ao nosso redor.

Estância Demétria

Rumamos para a tal Estância Demétria, em torno da qual o bairro se formou. Paramos o carro e começamos a caminhar.

Talvez por ser fim de semana seguido por feriado municipal na segunda-feira, o local estava totalmente deserto, habitado apenas por simpáticos cães, galinhas de grande porte, porquinhos-da-índia e uma tão vasta quanto diversa vegetação permeada por cactáceas..

O sol já se escondia atrás das árvores e introduzia à cena um velho vento gelado. Decidimos voltar ao carro e mais uma vez visitar a Bioloja, com a missão de experimentar seus ultradesejados sorvetes caseiros.

A Bioloja, localizada no Sítio Bahia — braço da Estância Demétria para produção de laticínios, geléias, compotas, pães & afins — é o local onde parte dos destes produtos são comercializados.

Sorvetes e pãezinhos depois, estávamos aproveitando os últimos raios de sol em meio à vegetação quando algo me chamou a atenção.

O que inicialmente imaginei serem lençóis brancos pendurados num varal, na verdade eram toalhas plásticas brancas penduradas num varal como se fossem lençóis brancos pendurados num varal.

Quase que por impulso saquei meu celular e comecei a me aproximar da cena, enquadrando-a. Porém, no meio do movimento, percebi que aquele dispositivo não era o mais adequado para tentar registrar aquela imagem.

Imagens são formas tangíveis — e até mesmo didáticas — de se compartilhar memórias & lembranças. E, apesar de ser adepto e defensor da baixa fidelidade em registros audiovisuais, existem momentos & momentos.

Este momento, esta memória, perderia muito da sua intensidade subjetiva — que, a meu ver, sempre é automática e drasticamente prejudicada, em maior ou menor proporção, quando qualquer momento é registrado, pois parte da presença necessária para propiciar a sensação transcendental de unidade, a integração sujeito-objeto, é transferida para o dispositivo utilizado, seja ele uma câmera ou uma folha em branco.

Penso nisso frequentemente, mas a necessidade de expressão autoral quase sempre fala mais alto; e isto, numa visão mais romântica da coisa, pode ser pensado como um “ato heróico”, já que o artista voluntariamente opta por diminuir a intensidade da sua experiência momentânea em nome do registro, o qual ele almeja compartilhar para possibilitar a outros de alguma forma vivenciarem aquela experiência, ou ao menos um simulacro dela em outros espaço-tempos, quiçá repetidas vezes, ao seu bel prazer.

Diante disso tudo, lembrei que minha companheira estava com sua câmera fotográfica que também grava, garantia de uma imagem com muito mais resolução, definição e fidelidade do que meu tradicional companheiro de bolso & aventuras.

De câmera em punho, me posicionei e, preso àquela cena, fiquei. Foram cerca de dez minutos divididos em três ou quatro pontos de vista, na tentativa de cobrir aquele simples, mágico & hipnótico momento. Só me dei conta e saí do transe depois de ser chamado algumas vezes para ir embora do local. O restante da viagem foi impecável, incluíndo maravilhosas pizzas, um pouco de vinho, cachoeiras & muita troca.

A Life in a Day

De volta à desvairada, no intuito de fazer algo simples & belo para tentar compartilhar aquela sensação com o maior número possível de pessoas, assim que possível fui dar uma olhada no material gravado. De forma aleatória, via Twitter, fiquei sabendo de um concurso promovido pelo YouTube chamado Life in a Day.

A idéia era fazer um documentário longa-metragem utilizando material enviado pelos usuários do site, produzido pela produtora dos irmãos Ridley e Tony Scott, dirigido por Kevin Macdonald, vencedor do Oscar com One Day in Septembercontroverso documentário de 1999 que retrata o sequestro de atletas israelenses por terroristas palestinos durante as Olimpíadas de Munique em 1972.

Os interessados eram instruídos a não atuar, encenar, nada do tipo; apenas registrar em vídeo algum(s) momento(s) do seu dia, qualquer coisa, do mais banal ao mais especial, fazer upload e aguardar a seleção do material, sendo todos os colaboradores selecionados creditados como co-diretores do filme.

O grande lance é que apenas material gravado no dia 24 de julho poderia ser enviado até a data-limite, 31 de julho. Achei a idéia interessante e olhei no calendário: sim, minhas imagens em Botucatu foram gravados no dia 24 de julho. Sincronicidade, ou pelo menos um incentivo para editar logo aquele material e tirar da frente mais esta obrigação auto-imposta.

Edição

Montar o vídeo foi interessante. Meu plano era apenas cortar as imagens e colocar como trilha sonora músicas de algum amigo, por conta dos direitos autorais. Deixei os canais de áudio do vídeo mudo, coloquei o iTunes no shuffle, cortei colei cortei colei desfiz refiz e cerca de duas horas depois eu tinha um primeiro corte do filme. Só faltava encontrar a trilha adequada…

Pausei o iTunes, habilitei o áudio do vídeo, coloquei fone de ouvido e dei play para ver o que tinha até então: ao longo dos sete minutos do vídeo, o som diegético — ou seja, os sons que estão na cena, de fundo — é composto por uma família (mães, tias, crianças) se divertindo, conversando e brincando de esconde-esconde. Desta forma, sem qualquer trilha extra, o filme ganhara um novo sentido e estava pronto.

Foi engraçado acompanhar em real-time o desespero dos participantes nos comentários do site. Todo mundo estava tendo problemas para subir seus vídeos. Tanto que os idealizadores do projeto tiveram que conceder um tempo adicional, acho que uma ou duas horas, para upload dos materiais.

Vídeo enviado com sucesso.

No dia seguinte, sem a pressão do relógio, fiz alguns ajustes, inseri créditos e finalizei a minha versão, que ganhou o nome de Escond&scondE.

Conclusão

Analisando o filme pronto, vejo-a como um novo exercício na linha de raciocínio iniciada nos meus primeiros trabalhos, Poltergeist Machine e Bush from my window:

São vídeos que consistem em registros crus, não premeditado e espontâneos, iniciados e finalizados num reduzido período de tempo. Algo que, no registrar e no assistir, envolvem algo metafísico, de presença e (auto)observação.

Pois estamos o tempo sendo bombardeados por estímulos externos (imagens, sons e todo o caos sensorial propiciado pelo cotidiano pós-chernobyl) e internos (nossa inquieta mente full-time online).

Escond&scondE é um pequeno passo em busca de uma arte “mais zen”, um espaço para a fluência da imaginação do espectador. É fruto subconsciente do contato com a obra de artistas como Chris Marker, Apichatpong Weerasethakul e outros que trabalham conceitos como memória, tempo, êxtase & afins. Digo subconsciente por serem autores cuja obra propriamente dita conheço muito pouco, mas ainda assim, por conta de textos e conversas sobre os mesmos, creio compartilhar idéias e conceitos em comum.

Pesquisando um pouco sobre isso, me deparei diversas vezes com a obra Transcendental Style in Film, livro publicado em 1972 por Paul Schrader — roteirista de pérolas como Taxi Driver e A Última Tentação de Cristo.

Um pequeno trecho lido online resume minha impressão em relação ao filme resultante desta pequena viagem (ao) interior:

“Homem e Natureza podem estar perpetuamente em conflito, mas paradoxalmente eles são um e o mesmo.”

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