SERPENTÁRIO — Nota do Editor
Um pouco do contexto e processos de Serpentário, livro de estreia de Sergio Santa Rosa na poesia
Sérgio Santa Rosa é um cara discreto. Se ele me fosse apresentado em algum Sesc da capital, na praça Roosevelt ou coisa que o valha, depois de alguma conversa eu acharia que ele é um crítico musical, ou melhor, um bom crítico musical. Sérgio é daquelas pessoas que — salvo engano — não toca nenhum instrumento musical, mas é completamente apaixonado por música. Gosta não só de ouvir e sentir, mas de ler e conversar sobre, transitando por entre diversos gêneros, daquele lado B obscuro aos lançamentos da semana do Spotify, com desenvoltura & coerência — coisa cada vez mais rara, nos sentidos amplos do termo, na Pindorama do final da década de 10 do século XXI.
Mas eu conheci Sérgio aqui em Botucatu, em grupo de escrita criativa, uns 4 anos atrás. O cara escrevia legal. Eu estava começando a editar e (auto)publicar meus primeiros livros. Soube que ele era um dos criadores e organizadores do festival da música da cidade Não me lembro se foi ele ou eu que precisou deixar o grupo primeiro. Nos encontrávamos esporadicamente na entrada ou saída da escola dos nossos filhos, trocávamos algumas palavras, sempre ensaiando uma volta conjunta ao grupo — o que nunca aconteceu. Nesse meio tempo, através de um amigo em comum, também poeta, soube que Sérgio tinha um livro “foda” juntando poeira em algum arquivo doc esquecido na pasta Documentos.
Sérgio “me emprestou” sua empresa para eu propor um projeto com ações de fomento à Literatura em um edital. A proposta foi contemplada e por conta disso passamos a ter mais contato. O projeto foi realizado com sucesso, inclusive sendo depois premiado. Na sequência, a partir de um pequeno grupo ali formado, começamos a fazer alguns saraus na cidade. Uma noite ele apareceu e leu alguns poemas de Serpentário, o tal livro pronto. Achei foda.
Passado um tempo
Sérgio me manda uma mensagem e marcamos de bater um papo. Ele não disse nada, mas senti que era sobre o livro. Eu queria falar para ele sobre um novo projeto em busca de proponente, um festival literário. Além de tudo, morávamos no mesmo bairro. Fui lá. Dito e feito, fito e deito: ele queria publicar o Serpentário. No dia seguinte, o original estava no meu email. Imprimi e deixei na cozinha. É um livro curto, mas ainda assim o li ao longo das manhãs de duas ou três semanas — apesar de escrever poesia, prefiro ler prosa; em momentos mais iconoclasta-eufórico, chego a blasfemar que não gosto de ler poesia. Por isso, quando leio algo que, de imediato, me chama atenção, penso “opa! aqui tem coisa”; e foi justamente isso que aconteceu quando li Lugares bonitos em SP, poema que abre o Serpentário — inclusive, que título, minha gente!
Deixo para os futuros comentaristas e estudiosos da poesia de Sérgio os comentários sobre o conteúdo e a forma dos poemas deste livro, mas digo o que acho & sinto: os poemas de Serpentário estão na nossa frente; acontecem “entre tragos, poemas e os gols do Fantástico”, como dito em Velhos Verões, dedicado à Sérgio Sampaio. Observando o que acabo de escrever, Serpentário tem disso: a música preenche seus ambientes enquanto as histórias, as imagens, são falados. Serpentário tem um quê cinematográfico, atrizes francesas ouvindo blues com Torquato Neto. Eric Dolphy apoiando seu cointreau em uma tábua Ouija.
Lendo os poemas, fiz umas poucas anotações, sugerindo inversões de linhas, substituições de termos, um ou outro corte. Comentei isso com Sérgio, pra saber se ele estava aberto a receber esses comentários, ao que ele respondeu que sim. Porém, ao final da diagramação, quando enviei o boneco para ele avaliar, achei que as modificações eram desnecessárias e os poemas deveriam vir ao mundo da forma final que o autor havia pensado, visto que aqueles pequenos detalhes não fariam grande diferença.
Diagramados os poemas, hora do projeto gráfico. Na nossa conversa em sua casa, Sérgio me disse duas ou três vezes que não queria uma serpente ou similar na capa, esse era o receio dele, e um dos motivos que o levou a me procurar. Naquele momento, eu estava numa onda found footage, material de arquivo, bancos de imagens & afins. Havia acabado de fazer um vídeo comercial totalmente nessa onda. Por uma questão de custo e cronograma, trabalhar com material preexistente era o caminho mais viável.
Dictionnaire Infernal
Um dia, tive uma noite estranha. Mesmo sendo dotado de um sono mineral, naquela noite fiquei acordando diversas vezes, até que decidi ler algo na cama para chamar o sono. Peguei o celular e tinha uma notificação do Medium, plataforma voltada para leitores e escritores. Evolução dos Demônios e as Origens da Goécia era o título do texto sugerido. Comecei a ler. O texto era longo, cheio de informações históricas que eram citadas, sem qualquer aprofundamento nestas, mas muito rico de referências. Mas o que mais me chamou a atenção foram as imagens que o ilustravam, gravuras feitas por Louis Le Breton, artista francês especializado em pinturas marinhas, para a sexta edição do um livro Dictionnaire Infernal, datada de 1863. Aquelas gravuras eram a cara do Serpentário.
Com mais de 150 anos me separando daquelas imagens, deduzi ser material em domínio público. Descolei um PDF da edição em alta resolução, fiz alguns experimentos e chamei o Sérgio — a priori, para mostrar a proposta da diagramação. Isso certo, perguntei se ele tinha pensado em algo para a parte gráfica, ao que ele trouxe uma ideia de utilizar as fotografias urbanas de um amigo. Paranóia, livro de estréia de Roberto Piva — até onde sei, o poeta favorito de Santa Rosa — , foi ilustrado com fotografias do artista plástico Wesley Duke Lee em parceria com a Paulicéia Desvairada. Saquei isso agora, então neste momento não sei se, da parte de Sérgio, essa referência foi (in)voluntária ou não. Fato curioso: Paranóia foi publicado em 1963, exatos 100 anos após a sexta, mais famosa e ilustrada edição do Dicionário Infernal.
As fotos que ele me mostrou eram bacanas mesmo e de alguma forma dialogavam com a obra; ainda assim, a meu ver, os seres & cenas do tal Le Breton — de alguma forma semiótica, análoga ou metafísica — , caiam como uma luva para aquela poemas. E assim foi. A ideia era testar uma gráfica online para pequenas tiragens. Sérgio deu ok no boneco digital e eu enviei os arquivos para impressão. Poucos dias depois recebo uma notificação no celular, o site do zucka me dizendo que o Sérgio tinha me marcado em uma publicação da Edusp, na qual se lia: “Acaba de ser lançada, em parceria com a Editora UnB e o Arquivo Nacional, a primeira edição brasileira do “Dicionário Infernal” de J. Collin de Plancy.”
Sim, amigues: 201 anos após sua publicação original na França, ao mesmo tempo que adaptações das gravuras de Le Breton estavam sendo impressas nos 10 exemplares beta de Serpentário, duas grandes editoras universitárias publicavam o título, até então inédito, no Brasil.
A meu ver, taí um ótimo exemplo de sincronicidade.
E aí?
Dois ou três dias depois, um sábado, organizei um sarau e, um pouco antes do início, Sérgio apareceu por lá. “Cara, cê viu que tão lançando o livro?” foi a primeira coisa que ele me disse. “Será que não pode dar problema? Pensando mais em você, na editora…”
Na segunda-feira de manhã entrei em contato com a Edusp por email. Menos de meia hora depois me respondem dizendo que meu raciocínio estava certo: as imagens e o texto original estão em domínio público e eles possuem somente os direitos sobre a tradução para o português.
Dois ou três dias e os primeiros exemplares do livro me eram entregues. Modéstia à parte, ficou lindão. Percebi pequenos detalhes, fiz micro correções e mandei rodar a tiragem desta 1ª edição do livro.
Nos dias seguintes, enquanto, ansioso, aguardava a campainha tocar, resolvi escrever esta nota, contando como, sob o olhar do editor, Serpentário, a estreia de Sérgio Santa Rosa na poesia, veio ao mundo.
Também fiz um videopoema para Lugares bonitos em SP, poema de abertura do livro, que pode ser conferido abaixo em sua versão convite para o sarau de lançamento do livro, que acontecerá dia 07/11 no Careca Rock Beer em Botucatu/SP.
Agora deixemos de conversa e aproveitemos. Vamos “pegar a estrada para o mar / e colocar dinamite nas palavras”, pois “o melhor de nós passa rápido / o pior também.”