título óbvio #2

Baga Defente
3 min readFeb 6, 2021
Arte original por Baga Defente

depois que você foi embora eu comecei a andar pela casa e vi pequenas partes suas espalhadas por quase todos os cômodos: a bicicleta na garagem, a planta na entrada, um cabo USB na sala, a panela de pressão na cozinha, o quadro que você pintou com seu sangue menstrual e deu pra mim de aniversário na parede do estúdio, a camisola de seda vermelha na gaveta, um colar no potinho de jóias ao lado do altar, sua escova de dentes amarela no armário do banheiro, teu cheiro na minha camiseta furada de pijama, o calor da tua imagem impressa na memória do meu peito peloso.

mesmo entendendo tudo o que estava acontecendo, depois que você foi embora eu fiquei meio abobalhado, eu me senti perdido, meio que sem saber o que fazer com essa tal liberdade. depois que você foi embora, eu soube que a maioria das estrelas da Via Láctea tem pelo menos uma companheira, porém sistemas planetários de estrelas múltiplas são mais enigmáticos.

depois que você foi embora eu continuei ouvindo o portão motorizado da garagem abrindo e o som do alarme trancando as portas do seu carro. continuei ouvindo seus passos no carpete da escada de madeira, subindo pro quarto enquanto esfrego meu corpo no banho. depois que você foi embora eu fiquei mais fedido.

depois que você foi embora eu transitei por campos harmônicos deslocados, me olhei no espelho e vi que a flor da alma havia criado raízes na minha caixa torácica. anfigúrico, eu ouvi que a dor é uma produtora de distâncias e que deve haver um comum para além do coletivo e um singular para além do indivíduo.

depois que você foi embora, você voltou e levou sua bicicleta. eu olhei para uma foto nossa num casamento presa no canto do meu painel de cortiça. mesmo sendo alto verão, depois que você foi embora eu comprei um kit de fondue usado, pois no presente contínuo da temporalidade pós-moderna o desejo e as ideias devem voltar a ser perigosas.

depois que você foi embora eu olhei todas as fotos, as suas & as nossas, arquivadas nuvem, nos positivos da minha memória. ainda que eu concorde com mercedes quando ela canta que todo cambia (pero no cambia mi amor), depois que você foi embora eu passei a sentir a tristeza da passagem do tempo, o tal do “mono no aware” dos japoneses; e assim, percebi que para viver no presente é preciso ver o passado e o futuro em nós.

depois que você foi embora eu fiz um tour guiado pelos sentimentos da minha memória. arrevesado, me senti num organograma complexo com muitas variáveis e me lembrei que é preciso produzir eternidades na existência, pois existir é criar realidades.

depois que você foi embora eu nunca mais fui o mesmo, ou melhor, eu voltei a ser o mesmo e comecei a sentir a sua falta, pois a gente é besta e dá mais valor àquilo que não está próximo.

depois que você foi embora eu confirmei que na prosa a linguagem é um meio; e na poesia, um fim.

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